domingo, 24 de julho de 2022

terça-feira, 8 de março de 2022



AMOR, MEMÓRIA E PASSADO “ENTRE ROMEUS”

LUIZ OTÁVIO OLIANI *

viver é resistir

ato de coragem

aceitar o desafio

de ser singular

no mundo plural

Julio Corrêa


O título “Entre Romeus”, de Julio Corrêa, traz, ao leitor comum, pelo conhecimento de mundo (e também literário), uma referência ao personagem Romeu Montécchio, do clássico de William Shakespeare, “Romeu e Julieta”. Se no teatro shakespeariano o amor dos personagens culmina em morte; aqui, nos poemas, a concepção do sentimento é totalmente oposta. 

Na abertura da obra, a epígrafe de Caetano Veloso dá um norte à leitura, já que o leitor / ouvinte da letra são indagados sobre quais seriam as cores de predileção. Isto mostra a tentativa de normatizar gostos ou buscar uma identidade individual? Fica a reflexão. 

O livro é dividido em duas partes: “cores quentes” e “cores frias”. A primeira trata da busca pelo amor, sem normatividades ou regras impostas pela sociedade. O território do coração pulsa totalmente livre, com um eu lírico homoafetivo forte, entre desejos e paixões. 

O poema de abertura, com o título do livro “entre Romeus”, mostra uma persona na zona Sul do Rio, com os versos: “voar / amar / é um risco que aceito / entre um Romeu e outro / sorridentes na contramão”. Eis um livro de aceitação do amor, sem ser panfletário ou político-partidário em defesa de um grupo social. 

Ao trazer elementos bíblicos da narrativa para o poema em “Maçã”, com a serpente, o paraíso, o pecado, Adão, o eu lírico se desnuda sem pejo: “desde cedo / eu quis comer / a fruta proibida do paraíso”. E após o sorriso da serpente, o convite aceito para o banquete, cantou o eu em “eu (Adão andrógino)”, como se o amar tivesse regras inflexíveis a serem seguidas. 

No poema “ficante” chamam a atenção: “aceito sua fome e sua sede / nessa nossa vida de mão dupla // entregue às vontades secretas”, sendo este último adjetivo essencial à compreensão dos desejos mais íntimos, porém, resguardados. 

Em “o duplo”, nas salas de musculação, muitos homens escondem os mais profundos anseios, isto porque os corpos másculos se sobrepõem aos anseios da carne. Representam “caças / caçadores / animais duplos // jubas amestradas / carícias entre garras / mordeduras em êxtase // epifania / lambuzam-se / em cilindros de leite”. 

O livro não retrata apenas as glórias do amor. O poema “contramão” traz as dualidades existentes em qualquer relacionamento. Semelhante a casais heterossexuais, já que o homem e a mulher, em relação amorosa, também se decepcionam; com os homoafetivos, não seria diferente. Por isso, o texto “entre flores” apresenta a paixão quando ele “abre o peito atrevido / o desejo me descontrola”, mas Romeu foi embora, deixando um vácuo no coração de alguém. 

O “retrato antigo revisitado” expõe, de forma poética, o desencontrar e encontrar-se no amor, com o surgimento de formas diferentes de amar. Se dois casais heterossexuais, João e Maria; Julieta e Romeu encontraram-se na balada e, se aflorou um desejo diverso do que antes era estabelecido, por que não se poderia viver tal sentimento? 

Nota-se, com todas as forças, a intenção de alcançar a felicidade em “paraquedas” quando, liberto de insubordinações contra o sistema, o eu lírico se mostra firme em propósitos pessoais.

A segunda parte do livro, “cores frias”, revela poemas que não tratam tanto da questão lírico-erótico-homoafetiva. São poucos que aludem a tal temática como “personas zodiacais” e outros. Na seção em voga, não há a ousadia da primeira parte do livro, mas uma contenção, já que o eu lírico se volta a outros temas caros à literatura como a efemeridade do tempo, a morte, a solidão, todos espalhados no volume. Os textos “nascente”, “decepção”, “frondosa natureza”, “gato escaldado”, “eu”, “(a)mar”, “onda”, “maioridade” e “prisão” confirmam a genialidade do autor que poderia comparecer a qualquer antologia da poesia brasileira contemporânea. 

Em “laços maternais”, há uma homenagem à mulher, à mãe, àquela que gera a vida no ventre. Em “cumplicidade”, a relação entre mãe e filho também aparece. Já no poema “Infância”, evocam-se os primeiros anos de vida. Entretanto, a morte do pai é documentada em “ausência”. 

Os versos “olhar longínquo / poucas palavras / sorriso tímido” traduzem uma postura de “reservado”, para se precaver dos invejosos, ainda que existam gestos sinceros e saudosos em relação ao passado. 

Quanto à estrutura dos poemas do volume em si, é importante dizer que há referências intertextuais, com citações a poemas, livros, autores e personalidades do mundo artístico em vários textos como “teogonia”, “cumplicidade”, “lua cheia”, “registros”, “ementa”, “entre eles & elas”, que alude ao clássico “Tristão e Isolda”; entre outros. Por isso, comparecem aos poemas desde a menção a um livro basilar da humanidade como a Bíblia Sagrada, mas também: Fernando Pessoa e o heterônimo Álvaro de Campos, Carlos Drummond de Andrade, Rimbaud, Camões, Charles Baudelaire, Ginsberg, Amália Rodrigues, Salvador Dalí, Ferreira Gullar, James Dean, Garcia Lorca, Florbela Espanca e Ana Cristina Cesar, que aparece como Ana C. no texto “reza de domingo”. 

Ao pinçar um verso romântico de Álvares de Azevedo, “se se morre de amor” para o título do seu poema, Julio Corrêa criou uma espécie de fórmula, a fim de se analisar como o amor morre, tal qual os versos da última estrofe: “de amor não se morre / se morre de desamor / de abandono / de desgosto / de maldade / de inveja / de ais.” 

A interdisciplinaridade está presente no belo poema “desencanto” em que a linguagem matemática conversa com conceitos gramaticais ou do vernáculo. A relação amorosa foi concluída com o desejo: “esqueça que fui o sujeito simples / do seu frio cálculo matemático / verbo irregular no seu plano cartesiano”.

No plano linguístico, há alta carga imagética, com metáforas ousadas, prosopopeias, antíteses, entre outras figuras, além da presença de rimas, adjetivos a clarificarem substantivos, como se nota em passagem do poema “tarde leve”, no qual o eu lírico passa pela praia e observa “anjos renascentistas / (...) / em trajes de banho / fotografias virtuais // (...) / meus olhos safados e dissimulados / fitam por baixo dos óculos de sol / esses filhos narcisos à beira-mar”. Paralelismos também aparecem em “moedas distintas” ou em “marinheiro galante”; texto em que saltam aos olhos versos iniciados nas cinco estrofes, com o pronome pessoal oblíquo e o verbo no futuro do presente do indicativo (“me farei”), o eu lírico se transforma em “abraço”, “sol”, “céu”, “ilha”, “tudo” para alcançar a expansão do sentimento amoroso.  

É diante deste “Entre Romeus”, que Julio Corrêa escreve entre pecados e culpas e diz: “eu construo poemas / e ainda me absolvo”, porque “escrever poemas cura mazelas / sequelas tristes de vidas passadas”, em “sincretismo”, ratificando a grandeza desta Poesia, com P maiúsculo.

* Professor e escritor. Em 2017, representou o Brasil no IV EPLP, Lisboa. Participa de mais de 200 livros coletivos. Consta em mais de 600 jornais, revistas e alternativos. Recebeu mais de 100 prêmios. Teve textos traduzidos para inglês, francês, italiano, alemão, espanhol, holandês e chinês. Publicou 14 livros: 10 de poemas, 3 peças de teatro e o livro de contos “A vida sem disfarces”, Prêmio Nelson Rodrigues, UBE/RJ, 2019. Recebeu o título de “Melhor Autor Apperjiano 2019” pelo conjunto da obra.